Menu

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O cheiro

       – Caraca! Esse povo não aprende mesmo para que serve o desodorante!
       Bolinha estava indignada, uma vez mais, com a fedorência de alguns franceses. Até que dessa vez, como a viagem foi no inverno, a gente estava sentindo poucas vezes aquele cheirinho característico de vários europeus: o cê-cê (é assim mesmo que se escreve, segundo o Houaiss, e é uma expressão que foi popularizada por um comercial de sabonete desodorante na década de 1940). A gente sempre foi pra lá no verão deles, então uma eventual falta de banho ficava evidente com a pouca roupa. Mas essa coroa aqui do lado... Putz! What a B.O.!
  E, engraçado, dessa vez não era uma catinga tradicional, tipo sovacada, saca? Era uma coisa diferente do normal, um ainda não estudado derivado do Fedor Fundamental (que vem a ser o fedor de onde todos os demais fedores provêm: o cheiro do caminhão de lixo!). Seja como for, nossa entrada no Museé Carnavalet ficou marcada por esse cheiro. Aprendemos umas coisas esquecíveis sobre a história de Paris, tiramos umas fotos meia-boca e fomos buscar a mochila e os casacos na recepção. E, ao pegar a mochila, eu olho para o lado um pouco espantado. A mulher que pegava a bolsa no armário adjacente tinha aquele mesmo xexéu estranho da mulher da entrada. Ah, dane-se, essa deve ser a fetidez de inverno deles, vamos ao banheiro. Enquanto a Bolinha foi, fiquei sozinho e pensativo: talvez o cheiro viesse dos banheiros, que ficavam escada abaixo, mas bem ao lado dos armários. Aguardando, eu estava sentindo aquele bodum de vez em quando. É, deve ser isso.
Minha vez de ir ao banheiro. Porém, curioso, aqui no banheiro não está fedendo assim, o cheiro que se nota é o de mijo, mas bem de leve. De repente é no das mulheres, apesar de eu não ter percebido nada na escada. Mas Bolinha disse que o banheiro era ok. E, também, que tinha sentido de leve aquela inhaca em algumas pessoas enquanto me esperava lá em cima.
Saímos do museu intrigados: será que era sempre o mesmo cheiro ou apenas impressão? Bem, deixa pra lá. Avançamos até a Place des Vosges, coisa linda, paramos em vitrines, Bolinha experimentou uns gorros fofos, uns chapéus legais, vamos parar num café?, flanamos livremente por Paris como reza o manual e... volta e meia vinha aquele futunzinho! Não era possível, eu não queria dizer o que já tinha pensado em um cantinho safado do cérebro, mas era bem capaz de estarmos sentindo nossa própria morrinha! Bolinha, vem cá, vou te dar um abraço e você confere se eu tô ruim, ok? Ela é pequena, o nariz encaixa certinho no sovaco, essa é uma manobra eficiente e disfarçadíssima. Parece apenas amor, em vez de uma profunda cafungada nas axilas. Mas eu estava bem, ufa! “Então só pode ser você!” O QUÊ? Ops, cala a boca. Arrependimento instantâneo. Mas, pô, tudo estava estranho, não custava investigar, hehehe. Ih, esquecemos de olhar as solas! Nada outra vez.
E ele foi-se mais uma vez. E voltava e ia e voltava e ia. De tempos em tempos, tchan!!! Paciência, Paris está meio que fedendo, ora bolas. Humpf, o Marais não é tão glamoroso quanto o Woody Allen quer nos fazer crer. E seguimos batendo perna até parar pra um belisquete e uma cerveja.
       – Moço, uma sopa de cebola e deux bières, se il vous plaît.
       – Legal, veio uma pipoquinha!
       – Tô com sede, pega a água na mochila pra mim?
       – Puta que pariu!!!
      VVVVUUURRRUUUIIIINNNVVVUUUVVVUUUURRUUUUIIINNVRUINNNHAAAAAUUUIIINNN... (Ok, foi mal, esse é meu som de rewind...  :-)
       De manhã, após termos ido tomar café na padaria vencedora do concurso de melhor baguete de Paris em 2014, fomos à Rue Mouffetard, simpática rua de comércio variado.
       – Ahhh, olha essa lojaaaaaa! Que sonho, quero levar tudo!!! Moça, qual você recomenda??? Olha isso, que lindo! É um presente maneiríssimo, não? São quatro variedades e vem com uma tábua e um cortador muito fofos! Quero isso, um pedaço desse, um daquele e um do que a senhora recomendou.
       VUUUUUUUSSSSSSSSSSSSHHHHHHHH: volta pra cerveja!
       – Huahuahahaha!!! Rsrsrsrss!!! Kkkkkk!
       Pois, ao abrir a mochila, eis que uma surpresa findou o mistério! O que fedia em todas as esquinas parisienses era a porra do queijo que tínhamos comprado de manhã! Rimos bastante. Havíamos amaldiçoado pessoas inocentes a torto e a direito, ficamos paranoicos, só faltei olhar minha cueca pra ver se não estava borrado! Mas a mochila não entrou no rol da suspeição.
       Podemos dizer que fizemos de tudo pra salvar aquilo. Assim que chegamos ao nosso apê, colocamos o maldito dentro de um saco, fechamos bem e botamos na geladeira. A tábua-presente também foi. Mesmo assim, cada vez que abríamos a porta era um sofrimento. Tinha que fechar logo pra não empestear o pequeno ambiente. Não fomos fortes o suficiente e jogamos o danado no lixo. Era só um pedacinho, mas era uma sementinha do mal! Depois, nós fomos de Paris para Lyon, já sem o diabo do queijo pestilento, mas a impressão era que o espírito do odor dos infernos ainda nos acompanhava. Estávamos sendo obsediados por espíritos malignos que queriam nos impedir de encontrar o menir comemorativo dos 200 anos de nascimento do Allan Kardec, só podia ser isso! Havia uma conspiração do além no ar. Tanto que o presente, a bela tábua que antes não se manifestava, começou também a nos atazanar, pois um daqueles queijos dela foi possuído pelo coisa ruim. Infelizmente, na embalagem não havia os nomes dos queijos, de forma que não pudemos proceder com o exorcismo. Afinal, todo mundo sabe que é necessário saber o nome do demônio para derrotá-lo.
       Nem nossa última tentativa deu certo. Já estando isolado por quatro sacolas muito bem lacradas – que apenas proporcionavam alívio parcial, nada que impedisse a camareira de pensar que éramos uns porcos imundos –, decidimos que o presente seria desmembrado. Os seres “mortos-vivos” iriam pro lixo e a tábua seria trazida ao Brasil. Mas após abrir a primeira sacola eu fiz vômito e corri pro banheiro. Não dá mais, Senhor! Eu desisto! E aquela porra toda ficou ali, numa lixeira do quarto do hotel. Por vacilo meu, sem nenhum aviso sobre a periculosidade do seu conteúdo, que deveria ser enterrado debaixo de muitos e muitos metros cúbicos de concreto, como os reatores de Chernobyl.



Nenhum comentário:

Postar um comentário