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terça-feira, 7 de julho de 2015

La muerte se aproxima

Rio de Janeiro, algum dia de 2010.

Botafogo, 16:41
       Terminei de dar uma aula particular. Aluna gente boa, eu mal podia imaginar que dali a umas semanas sua mãe fosse me dar um cano de 500 reais. Eu passei a aula incomodado com o fato de que o celular vibrava a todo momento; pô, todo mundo sabe que sou professor, se eu não atender é porque estou dando aula. É só esperar um pouquinho. Mas estava estranho. Fui conferir o telefone e havia umas dez ligações perdidas, do pai, da namorada, até da tia. Completamente anormal. 
       Bem, sabemos que esse é um padrão recorrente de quando dá merda. Apesar disso, fiquei calmo: vai que só queriam me avisar que o jantar ia ser de sobras da feijoada de domingo? Liguei pra namorada e pra tia. Não consegui. Por último, encarei ligar pra casa do meu pai. Deixei-o por último por puro medo. Ele e outra tia moram juntos e já não são lá tão jovens, além de terem certos hábitos e problemas que fazem deles espécies de bombas-relógio, do ponto de vista médico.
       Na casa dele atenderam. Era a Marilene, a empregada. Falou completamente esbaforida, atropelando tudo.
       - Oi-Leandro-meus-sentimentos-seu-pai-pediu-pra-avisar-que-está-indo-pra-sua-casa. 
       - O QUÊ? Caraca! Marilene, o que você disse? O que houve? 
       - Seu pai pediu pra avisar que está indo pra sua casa. 
       - Tá, tá! Você me deu sentimentos, o que aconteceu? 
       - Ai, meu Deus! Não sei de nada, fala com ele no celular! 
       - Tá bom, tá bom, tchau!


Minutos antes, Vila da Penha, casa do Roberto, meu pai, 16:21
       - Alô! Tá, calma, vou chamar ele... 
       - Roberto, é o Leandro no telefone. Ele tá com uma voz muito estranha... 
       - Oi. O que houve? Ah, meu Deus... Fica calmo, meu filho, eu tô indo para aí agora, tá? 
       - Marilene, vou correndo pra casa do Leandro. Liga pra Janete, avisa que (...)

De volta ao trânsito, Botafogo, 16:44
       Oi, Marilene, é o Leandro de novo. Não consigo falar com meu pai. Olha, você me deu os sentimentos, eu ouvi... Pode falar, não tem problema, quem morreu? Hã? Não, não liguei cedo nem falei com você nem dei notícia nenhuma! Tá doida?

Botafogo, no trânsito, 16:46
       Eu ainda estava tonto. Como assim minha mãe morreu? Eu não liguei pra casa do meu pai dizendo isso, então quem foi? Eu estava muito mais para intrigado do que para triste, essa história estava muito mal contada. Mesmo assim, estava morrendo de medo quando liguei pra minha irmã. Ela morava com minha mãe, se fosse verdade, ela ia me explicar o que aconteceu, ela ia me dizer pra onde ir. Só que minha irmã não atendeu. Mas atenderam a ligação. Minha mãe atendeu.

Botafogo, no trânsito, 16:49
       Marilene, olha só, feche a casa toda e não vá na porta atender ninguém! Acabei de falar com a minha mãe, ela está bem, essa porra é algum golpe que estão tentando dar, queriam tirar o meu pai de casa! Minha tia está aí? Diz pra ela também não atender ninguém, NINGUÉM! Avise às pessoas! Avise à polícia! Entendeu bem? Entendeu?

Minutos antes, Tomás Coelho (tia Jane) & Praça Seca (tia Janete), 16:28 - Sofrimento duplo
       Oi, Janete, que bom que você ligou. Você já deve estar sabendo, né?
       - Estava ligando para te avisar. Meu Deus, que coisa, tão de repente. E o pior é que ninguém consegue falar com o Leandro. Coitado, como ele vai receber essa notícia?
       - Leandro? Não sabia que ele era assim ligado com a Yara...
       - Yara? Que Yara? 
       - Janete! A prima Yara, de Niterói... Caramba, do que você estava falando?
       - Ai, o que tem com a Yara?
       - Ela morreu hoje de manhã! O filho dela ligou agorinha mesmo. Você não me ligou por isso, mulher?
       - Não! Liguei pra avisar que morreu a Ozélia, mãe do Leandro! Jane, não brinca! Não pode ser... A Yara também morreu?
       - Meu Deus! A Ozélia também morreu?

De volta ao trânsito, Vila Isabel, quase em casa, ainda no engarrafamento, 17:08
       Oi, Marilene, até que enfim consegui! Alguém tentou entrar aí? O quê? A Yara morreu? E o filhos dela, estão bem? Que confusão! Fala sério, como é que a Yara morre e acham que quem morreu foi minha mãe? Tá, deixa pra lá, já estou chegando em casa, mas ninguém atende o celular do meu pai. Pô, já liguei muitas vezes, tô um pouco preocupado...

Vila Isabel, 17:15
       Na verdade, eu estava muito preocupado. Meu pai não atendia as minhas ligações, ele é emotivo demais, ele é diabético, é hipertenso e é cardíaco. Também é míope e obeso, tem hérnia umbilical e bronquite, acho que são mais de 30 doenças no total, há uns anos fizemos um inventário delas no boteco, passa o tempo que é uma beleza. Taí, preciso de uma atualização! Enfim, num dia estranho como esse, passam as coisas mais bizarras na cabeça. Imagina só: num minuto minha mãe ressuscita de uma morte de mentirinha e, no minuto seguinte, meu pai bate as botas de verdade por causa da emoção causada por uma morte que não aconteceu. Seria uma verdadeira "puta falta de sacanagem". Corri o quanto pude. Mas o engarrafamento estava tão intenso que larguei o carro na rua de trás e fui a pé pra minha casa, olhando pra todos os carros estacionados no caminho. 
       De longe deu pra ver aquele barrigão parado na porta do meu prédio. Atravessei a rua e encontrei com ele. Primeiro, um esporro, né? Por que não atende a porra do celular? Tô que nem um maluco te ligando e achando que você passou mal! Mas ele nem deu bola e disse, cabisbaixo, que no nervoso esqueceu o telefone no carro. Olhos marejados, me abraçou e deu uma choradinha de tristeza.
       - Nós estávamos separados há 30 anos, mas ela vai sempre ser a mãe do meu único filho...
       - Minha mãe? Não, não, minha mãe não morreu!
       Ele parecia não acreditar. É sério que a Ozélia está bem? Olhos marejados, me abraçou e deu uma choradinha de alegria.
       - Quem morreu foi a Yara.
       - A Yara morreu?
       Putz, ele ainda não sabia, sou um ogro. Olhos marejados, me abraçou e deu uma choradinha de tristeza.
       Fim.

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Esclarecimentos e complementos

A SEMENTINHA DA CONFUSÃO
Vila da Penha, casa do Roberto, 16:21 - Conversa completa
MarileneAlô! 
Frederico, filho da Yara, chorando e falando confuso: Oi, posso falar com o Roberto?
MarileneTá, calma, vou chamar ele... 
Marilene: Roberto, é o Leandro no telefone. (Ahá!) Ele tá com uma voz muito estranha... 
Roberto: Oi. O que houve? 
Frederico, filho da Yara, chorando e falando confusoMinha mãe morreu.
Roberto: Ah, meu Deus... Fica calmo, meu filho, eu tô indo para aí agora, tá? 
Roberto: Marilene, vou correndo pra casa do Leandro. Liga pra Janete, avisa que (...)

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DONA OZÉLIA, NA SUA ESSÊNCIA
Dias depois, conversa relaxada com mamãe, Vila Isabel
       E minha mãe? Ela teve uma reação bem, digamos, "minha mãe" ao caso. Em primeiro lugar, ela se sentiu valorizada. Isso mesmo, ficou feliz por saber que tanta gente chorou com sua "morte". Depois, intrigada, fez uma pergunta incrível:
       - Mas por que as pessoas não ligaram pra mim pra saber direito o que aconteceu? 
       - Porque vc estava MORTA!

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       Descanse em paz, prima Yara!

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