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quinta-feira, 2 de abril de 2015

Turcomenistão, Parte III: Yangykala Canyon

       - E aí, Mila, rola banheiro nos lugares que vamos no deserto?
       - Unfortunately, this route this is an extreme route, so convenience to a minimum. In yurts no bathrooms!!!
       - Mas... e como a galera se resolve com... hummmm... necessidades fisiológicas?
       - Physiological needs'll do on the nature of the toilets.
       Era sempre foda de entender pelo menos uma frase dela em cada email. Apesar dessa última frase ter potencial pra render umas teses de doutorado, confesso que essa resposta só ficou enigmática depois que eu voltei de lá. Na hora, interpretei rapidamente como "se quiser cagar, vai atrás da pedra". E fomos preparados pra isso. (Na verdade, só AGORA notei como EU sou burro! Ela quis dizer que não haveria bathrooms, mas não disse que não haveria toilets. Dei mole e tive pesadelos com escorpiões beliscando minha bunda atrás da pedra à toa.)

       No segundo dia no país, finalmente começou a parte que achávamos que seria a mais problemática, a que nos causou frisson por vários meses só de pensar: passaríamos dois dias e meio viajando pelo deserto, dormindo no que a Mila chamou de "national house" num dia e numa "yurt" no outro. O pior, minhas aflições sobre banheiros receberam esse "incentivo" nessas respostas, que reproduzi exatamente como ela escreveu com seu inglês todo particular. 
       De qualquer forma, era inverno (o de verdade, aquele em que as temperaturas vão abaixo de zero e neva) e achamos que ficar dois dias sem banho não seria assim tão horrível. Sim, porcaria mode on! O medo era o corpo pedir pra mandar um número dois. Precavidos, viajamos com MUITOS lenços umedecidos, hehehe. Seria a salvação, caso necessário. Quando começou, fomos conhecendo uns banheiros pela estrada. Para nossa decepção, a previsão de meu tio sábio, o Ricardo, se concretizou. Não havia privadas. Tínhamos que mirar o xixi em um buraco do tamanho de metade de uma folha A4. Um buraco mesmo, NÃO ERAM aquelas privadas no chão, com lugarzinho pra botar o pé do lado. Se olhasse bem, lá no fundo dava pra ver uma "água" com uns dejetos. O cheiro era ótimo! Por isso as mulheres lá estavam sempre de vestido; Bolinha, com duas ou mais calças pra aliviar a friaca, sempre se ferrava pra dar um mijão. (A propósito, resistimos ao número dois nesse período! Até tive um momento muito tenso, mas respirei fundo, andei devagar, engoli o choro e segui viagem!)
       Nós partimos na manhã do dia 5 de janeiro rumo a Nohur. A primeira parada foi em Kow Ata, um lago subterrâneo com águas termais. Disseram que tem propriedades terapêuticas blábláblá. Quando descemos até o lago, um leve frisson se formou entre a galera que estava na água. Todo mundo olhando pra gente. "Yada yada yada TURIZTS". Essa é uma das sete palavras que dava pra gente entender. Segundo o guia, Kow Ata é a praia de Ashgabat. Nosso almoço foi por lá. 
Levei esporro porque não avisei sobre a necessidade de trajes de banho!
Boa comida: era meio que um churrasco com carne de boi, de frango, de cordeiro e salada. Ali, começamos a descobrir um mundo em que tomate e pepino são onipresentes!
       Prosseguimos na estrada e chegamos mais para o final da tarde a Nohur, que é um vilarejo no meio das montanhas e tem bastante história. Há várias lendas cercando a vila: lá seria o local onde a Arca de Noé atracou e onde Alexander the Great (Somewhere in Time, 1986 :-) e seu exército deixaram descendentes. Até hoje, os nohurenses só se casam com outros nohurianos, de forma que há uma quantidade acima do comum de casamentos entre familiares - ainda que relativamente distantes. O guia disse que, apesar disso, a quantidade de malformações fetais não é acima da média.
       A primeira coisa que nos levaram para ver foi isso aí das fotos seguintes. A primeira foto registra o primeiro contato que tive na vida com a neve, ainda que fosse uma merreca e estivesse imunda. Na segunda, a gente teve dificuldade para enxergar o que queriam nos mostrar: olhe bem que no meio da foto dá pra ver, com boa vontade, uma coisa.
Neve no deserto. A gente fez os caras voltarem pra isso... 
No meio da paisagem tem uma "caudalosa" cachoeira. Fingimos que achamos interessante, fazer o quê? Disseram que quando chove ela fica legal. Ok, o que esperar de uma cachoeira no deserto?
Perto da incrível queda d'água, eu, Sasha, o nosso motorista russo figuraça, e Rustan, o guia falastrão e gente boa. Repare que o carro está limpíssimo, apesar de ter transitado por horas no deserto. Eles LAVAVAM o carro a cada vez que parávamos!
       Após a decepção, fomos no alto de um morro onde uma caverna, Gyz-Bibi, teria se fechado milagrosamente após as mulheres do local terem entrado para fugir dos soldados gregos invasores. Elas escaparam dos prováveis estupros, mas foram trancafiadas por toda a eternidade no local.
A pequena entrada de Gyz-Bibi. Até hoje não se sabe se há ossos lá dentro.
Em frente a Gyz-Bibi: os panos brancos são de mulheres pedindo filhas e os coloridos pedem meninos. Parece que Nohur é o único lugar do país com predominância de panos brancos. Esqueci de perguntar qual é a dos panos mistos...
       O cemitério de Nohur era uma das coisas que eu queria visitar. As tumbas são ornamentadas com chifres de bodes, é uma visão impactante. O Rustan (guia) explicou que isso começou no tempo da invasão dos gregos, que colocavam os chifres nos túmulos dos grandes guerreiros. Hoje em dia os chifres são não mais que um enfeite tradicional. Depois disso, toda vez que eu ficava com medinho de alguma coisa era obrigado a ouvir: "seu túmulo não vai ter chifres!" Eu queria muito tirar uma foto de lá, mas ele disse que os moradores (os vivos  :-) podiam não gostar. Porém, quando estávamos saindo do cemitério, ele fechou a porta e disse que se eu abrisse a porta, tirasse as fotos e eu mesmo trancasse o portão, isso não seria considerado ofensivo. Ele disse isso e saiu de perto. Foi meio sinistro, achei que ia ganhar umas fotos e uma maldição, mas não pipoquei, hehehe.
O belo cemitério de Nohur.
Os túmulos vistos de perto.
       Depois, partimos para uma fazer coisa que eu sempre sonhei em uma viagem: uma refeição na casa de uma família - o que é um desejo bem estranho, dado que eu não costumo ser simpático com desconhecidos (tá bom, tá bom, nem com conhecidos... :-). Foi tudo arranjado pela agência, mas já é um começo. Um dia eu consigo na amizade. Fomos apresentados aos donos da casa, super simpáticos, um casal aparentando uns 60 e poucos anos. Gaip era o nome dele. 
       Do lado de fora da casa, havia um banheiro pequeno com uma privada no chão e, ao lado, um grande vestiário, com um chuveiro (que não tinha água quente). Na sala, não havia um móvel sequer, só tapetes super limpos cobrindo o ambiente todo. No chão, apenas um aquecedor poderoso num canto. Nas paredes, apenas uma TV (tela plana), uma foto (pequena) do casamento deles na década de 1970 e uma foto (enorme) do... presidente! O Gaip trouxe seu neto mais novo pra fazer merda na sala. Fofinho o moleque. Depois de alguma "conversa" - sempre com dificuldade e contando com a tradução do Rustan - fomos acomodados em um quarto enorme. A roupa de cama estava bem cheirosa. Uma bela surpresa pra quem estava achando que ia dormir com os escorpiões.
       O jantar foi muito legal, inclusive porque a gente não sabia o que fazer. Eles comem deitados, tentamos deitar também. Levei um leve esporro por tomar a sopa com a colher errada. Como ia adivinhar que era pra usar a gigante, que mais parecia uma concha? O prato principal era um palow, um morro de arroz (gostoso) com um pedaço de carne em cima. Lá era frango, mas comemos em outro lugar com carne de outro ser. Depois do jantar fomos todos dormir; o dia seguinte seria bem cansativo.
Cada um com seu colchonete e sua almofadinha. Ao fundo, o Rustan está comendo deitado. É impossível! Pode sentar? Pode. E você, se for barrigudo, que se ferre pra comer nessa posição, hehehe. 
Os chefes da família: Gaip e sua esposa. Tinha mais uma galera na casa, um monte de filhos e netos. Mas eles não se misturaram com a gente, hehehe. Tem um pequeno olho turco na geladeira.
       Logo depois do café (que teve um queijo de ovelha caseiro sensacional), pegamos a estrada novamente, rumo ao Cânion de Yangykala, um de nossos objetivos no país.
Sol nascendo e pé na estrada de novo!
       Conseguimos umas imagens legais na estrada. Camelos bebendo água, belas dunas, areia invadindo a estrada. A gente encheu o saco deles e parávamos pra tudo.
Camelos felizes bebiam uma santa e rara água em paz...
... até que alguém inconveniente botou todo mundo pra correr!
Dunas do Deserto de Karakum.
Dunas, dunas, mais dunas e uma névoa de areia. Legal.
Estrada invadida pela areia: o tempo todo!
Biblioteca de Balkanabat. Almoçamos na cidade.
       Depois do almoço, a próxima parada era Yangykala, onde passaríamos a tarde. Mas só pra dar mais emoção, no meio do nada, já em uma estrada secundária horrorosa, o Sasha se empolgou, meteu o carro num buracão e o pneu furou! Ele foi trocar e a gente foi se divertir tirando fotos.
O Sasha deu um jeito. Aliás, descobri algo incrível: Sasha é o apelido russo para Alexander!!! Ok, ok, não tem nada de incrível...
Pedido de ajuda pra ninguém!
       E, finalmente, chegamos ao nosso objetivo: o multicolorido, impressionante e alienígena Cânion de Yangykala. Os cânions e penhascos se estendem por 25 km, numa região aproximadamente 165 km ao norte de Balkanabat e 160 km a leste de Turkmenbashi. As rochas assumem colorações brancas, amareladas, rosadas, avermelhadas e, em alguns pontos, esverdeadas. Vários dos penhascos têm até três cores. Segundo o Rustan, a região já foi toda coberta por água. Ele nos mostrou centenas de conchas, espalhadas por todo o alto de uma plataforma, que corroboram essa informação. Também nos mostrou uns fragmentos de rocha negros, que seriam pedaços de um meteorito.
       Para chegar lá, só mesmo com um veículo 4x4. O Rustan nos disse que muita gente no país nem sabe da existência do cânion. Muitos turistas acampam no local, mas por ser inverno isso seria impossível pra gente. A temperatura cai muito e o vento é muito forte. Se por um lado isso é ruim, por outro foi bom. Estávamos completamente solitários. Que diferença para os lugares onde hordas de turistas, em excursões sem nenhuma personalidade ou toque pessoal, te atropelam. Nenhuma viva alma parecia estar a menos de 100 km da gente. Não víamos outras pessoas desde que o pneu furou na estrada, quando passou um cara numa moto e ofereceu ajuda. O cânion era só nosso e isso realmente contribuía para a sensação de liberdade e quase tontura por estar vendo aquilo tudo. Seguem algumas fotos.
Chegamos em Marte!
A vista é muito bizarra.
Imensidão de penhascos...
Pinto no lixo!
Tem que ser muito destemido pra ir naquela pontinha! Ok, ok, não é tão perigoso quanto parece por alguns ângulos.
Essa é a foto que eu mais gosto. Coiote prestes a se ferrar mais uma vez nas mãos do Papa-Léguas!
       Com dor no coração, tivemos que partir pouco antes de anoitecer. De lá, fomos para o local onde dormiríamos. Passamos a noite em um alojamento próximo aos mausoléus de Gözli Ata e sua esposa. Ele foi um respeitado Sufi Teacher (eu chamaria de mentor religioso do Islã) que viveu no século XIV e foi morto por invasores mongóis. O local é considerado sagrado e é talvez o mais importante ponto de peregrinação muçulmana do país. Segundo a tradição, os peregrinos devem primeiro rezar no mausoléu da esposa. O complexo fica em uma depressão natural e é cercado por montanhas com formações coloridas parecidas com as do Cânion de Yangykala.
       O alojamento tinha capacidade para umas 100 pessoas, talvez. Era enorme e tinha MUITOS colchonetes disponíveis. Lá não era, nem de perto, limpo como no Gaip, ainda que não chegasse a ser sujo. Felizmente, não havia ninguém além de nós quatro para dormir lá. Pessoas que aparentemente moravam no local cozinharam pra gente. Não sei se era uma diretriz da agência, mas sempre tinha muito mais comida do que conseguíamos comer. Às vezes a gente tentava avisar que não precisava tanto, mas ignoravam. O Sasha, figuraça, sempre ficava reclamando que a gente comia pouco. Bem, a gente acha que era isso que ele estava falando... Yuro, yuro, yuro! (Piada interna, foi mal   :-)
O mausoléu à noitinha.
Os onipresentes tomate e pepino!
       O dia seguinte seria somente para voltar a Ashgabat, com previsão de chegada no fim da tarde. Então, acordei bem cedo pra poder tirar umas fotos antes de sair. As montanhas coloridas que só tínhamos visto de longe estavam agora logo ali. Saí sozinho com câmeras, pau de selfie e tripé pra extrair as últimas gotas do lugar. 
Os mausoléus.
Fui solitário. Por algum motivo achei q eram uns 500 metros, mas acho q essas rochas ficam a uns 2 km do alojamento.
A recompensa.
       A viagem de volta durou umas oito ou nove horas, mas nem sentimos. E encontramos os últimos amigos no caminho.



       É isso. O próximo (e último, finalmente) post do Turcomenistão é sobre a Porta do Inferno.

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