Menu

sábado, 18 de abril de 2015

Turcomenistão, Parte IV (Final): A Porta do Inferno

       Highway to Hell - Alice in Hell - Heaven and Hell - Road to Hell - Go to Hell - Long Way Back from Hell - Hell Patrol - Louder than Hell - Into the Lungs of Hell - Hell's Motel - Kenny Goes to Hell - Green Hell - Hell Spawn - Welcome to Hell - Hellraiser - Cowboys from Hell - Run like Hell - Hell's Kitchen - Hell Bent for Leather - Burn in Hell - Hell Is Home - Hellrider - Hellspawn: The Rebirth - Hell Awaits - Hounds of Hell - Leave Me in Hell - To Hell and Back - The Seven Gates of Hell - Women, Leather and Hell - Hellchild - Raised in Hell - Hell Bent for Metal - Burn in Hell - Cajun Hell - One Foot in Hell - Hell and Back...
       What the hell?!?!?!
       Pois é, isso foi apenas o resultado de uma pesquisa rápida feita nas músicas que tenho no computador. É impossível desvincular o heavy metal do inferno, ainda que grande parte daqueles que não-entendem-porra-nenhuma-de-metal faça uma confusão danada e ache que toda banda de metal é satanista. Muita gente confunde todo o teatro que cerca o gênero com uma real adoração ao capeta. Isso não acontece em 99% dos casos. Salvo umas bandas escandinavas realmente sinistras, e uma ou outra aqui e ali, a maioria só escreve a respeito por conta de um comportamento super infantil: olha só como eu sou mau! Só isso. Assim sendo, pelamordedeus, nada de achar que sou satanista, ok? Não deixe a SUA infantilidade interpretar mal a MINHA.  :-)
       Enfim, um cenário de chamas em um buraco remoto no meio do deserto é atraente demais para um metalhead. Ainda mais quando você descobre que chamam aquilo de "Door to Hell". Eu simplesmente não pude resistir à tentação de ter uma foto fazendo o símbolo do metal na frente daquilo.
       A Porta do Inferno foi a principal razão que nos levou ao Turcomenistão. E, apesar de termos visto muitas coisas legais e feito muitas coisas legais por lá, ela foi mesmo a estrela da viagem. Então vamos lá.
       Em 1971, quando o Turcomenistão era uma das repúblicas da URSS, os soviéticos estavam atrás de petróleo no Deserto de Karakum. Fizeram perfurações em vários locais, inclusive próximo à aldeia de Darvaza (que, olha que coincidência linda!, significa "Portão" em turcomeno). Um acidente criou aquela coisa incrível: havia uma grande caverna subterrânea no local da perfuração que, ao ser atingida, fez o solo entrar em colapso. Consta que felizmente não houve mortes como consequência do episódio. Mas uma grande quantidade de gás tóxico, não de petróleo, começou a vazar e, na impossibilidade de armazená-lo, os cientistas decidiram que a melhor solução era queimá-lo para evitar maiores problemas de saúde no povoado próximo. As previsões iniciais eram de que todo o gás se queimaria em algumas semanas, mas as chamas simplesmente não se apagam há mais de quatro décadas. E assim foi criada a cratera de gás de Darvaza, ou melhor, The Door to Hell.
       Apesar dessa versão ser largamente difundida na internet, um grupo de pesquisadores, ligados à National Geographic, ao fazer experimentos na cratera (que incluíram a entrada de uma pessoa nela), obteve informações diferentes de geólogos locais, acerca das datas da formação e da queima do gás. Segundo essa versão, a cratera teria sido aberta nos anos 1960 e a queima teria começado somente nos anos 1980. Tudo, porém, é muito especulativo, pois não há registros oficiais.
       Nós rumamos para Darvaza no nosso penúltimo dia no país, para voltar a Ashgabat na manhã seguinte. Passamos antes na Fortaleza de Nissa e na Mesquita de Kipchak. A cratera fica a 260 km ao norte de Ashgabat. O acesso até suas proximidades é feito por uma estrada em boas condições. Nesse dia estava fazendo MUITO frio e a previsão era de neve para a capital.
Nissa é patrimônio protegido pela UNESCO, mas, sinceramente, não achei muito interessante. É um monte de barro, 95% é reconstrução, pouquíssima coisa original preservada é realmente interessante. Aqui eu já estava treinando, junto com o Rustan, o metaaaal para a cratera!
Uma revoada desse tamanho é mau sinal. Eles estavam fugindo da neve!
       Estava tão ansioso que fui com o GPS ligado no celular durante o caminho. Havia duas marcações "Door to Hell" no mapa e sempre acreditei que a correta seria a mais ao sul, ainda na província de Ahal. Mas passamos direto, cruzando a fronteira para a província de Dashoguz. Após placas inusitadas do tipo "cuidado com o camelídeo!" e engarrafamentos causado pelos referidos animais, finalmente saímos da estrada e entramos no deserto, transitando sobre as dunas.
Olha o camelo!
Não é que era pra levar a sério?
Acabou a estrada. Agora é no meio da areia.
       Depois que saímos da estrada, a cada vez que subíamos uma duna eu achava que ia chegar. Isso aconteceu umas cinco vezes, até que uma hora o Rustan mandou um "are you ready?" E, enquanto eu olhava pela janela esquerda e dizia "Bolinha, é agora!", ela estava olhando pro outro lado com a maior cara de babaca da vida dela. E soltou, lentamente, "Ca-ra-lho!", enquanto eu continuava a olhar pro lado errado esperando isso aí chegar...
São 70 metros de diâmetro.
       Creio que ficamos quase 3 horas no entorno da cratera. Quando chegamos havia um carro próximo à borda e, depois de algum tempo, saiu um cara de dentro. Era um turista suíço solitário, que parecia estar muito mais incomodado com o frio do que a gente, mas igualmente embasbacado com a visão. O cara desistiu rápido, foi embora pouco depois de escurecer e, adivinha, a cratera foi só nossa! E saímos tirando fotos feito loucos, alternando momentos em que tentávamos descongelar os dedos, e outros em que simplesmente parávamos para olhar o furo. 
       Seguem os momentos heavy metal.
Eu realmente PRECISAVA dessa foto. Pena que ficou ruim...
Impossível não lembrar do clássico The Number of the Beast!
Larga o dedo aí que vou fazer poses sem sentido!
Air guitar! 
       O Sasha, falando em russo incompreensível, claro, nos disse o lugar certo pra diminuir a sensação de congelamento e nos levou para o alto de um morrinho pra achar uns ângulos legais.
So come on! Jump in the fire!
       O som do local é impressionante. É aquele ruído tradicional de labaredas ardendo, só que são π.35² ≅ 3848,451 metros quadrados de fogo do inferno lambendo! Sobre o cheiro, eu tinha lido coisas horríveis. Sério, não é nada demais. É o cheiro do seu forno ligado. Não sei se sem vento a coisa fica pior, mas o odor definitivamente não nos incomodou. 
       A seguir, momentos de contemplação.  :-)
Nós nos posicionamos de forma que o vento levasse o calor pra cima da gente. Estava coisa de 5 graus negativos, mas o vento fazia a sensação térmica ser mais baixa.
Espero não esquecer desse dia quando ficar velhinho... :-)
Woe to you O earth and sea
For the devil sends the beast with wrath
Because he knows the time is short
Let him who hath understanding
Reckon the number of the beast
For it is a human number
Its number is six hundred and sixty six...
       Assim como no cânion, a gente não queria ir embora, mas, também como lá, não era possível ficar. No programa tradicional em Darvaza, as pessoas acampam próximo à cratera, mas no inverno isso é impossível. A informação que tivemos é que, nessa noite, a temperatura atingiu 9 ou 10 graus negativos!
       Após dar tchau pra Porta do Inferno, partimos de volta para a estrada para procurar um lugar pra dormir. O primeiro café que encontramos não tinha vaga para quatro pessoas. Sim, iríamos dormir em algum restaurante! Mais alguns minutos e chegamos a um restaurante maior. Nesse havia até uma mesinha para comer. Tinha pouco mais de um palmo de altura, é verdade, mas pelo menos não era no chão. A gente tinha comprado um monte de cervejas e eles levaram um "konýagy" (creio que era um conhaque, mas não entendo de destilados). Beberam aquela cachaça braba e ficaram bolados com a gente bebendo cerveja, não sei o porquê.
A bebida do mal dos turcomenos, o Konýagy BibiJan.
       Depois do jantar e das cervejas, fomos ao "banheiro". Desespero. O frio era ensurdecedor! E o dito cujo ficava a uns 100 metros do restaurante. Andamos até lá lutando contra uma friaca dos diabos, com medo dos cães latindo no caminho, e, quando chegamos, pudemos testemunhar o mais especial de todos os buracos-de-necessidades do Turcomenistão. Apesar de haver uma proteção - era uma casinha de madeira - não havia teto. Quando abrimos a porta, a visão foi terrível como o cheiro: tinha até absorvente usado no chão daquilo, além dos "produtos" corporais tradicionais. O chão era de madeira, o que certamente dificultava a limpeza. Não tinha luz. Enquanto Bolinha usava, eu segurava o celular por cima da porta pra ela poder enxergar. Dessa vez, o frio extremo junto com a falta de teto a fez ter certeza de que tinha errado o buraco no chão e acertado o xixi dentro da calça. Por sorte, era apenas o frio congelando a sua bunda! Ainda bem que pra homem é molezinha.
       Quando voltamos, resolvi sair para tirar umas fotos. Loucura? Não, não. Assim que saímos das dunas e voltamos pra estrada, o Rustan perguntou "acha que acabou? Olhe para a direita!". E percebi que, que beleza!, não tinha acabado ainda! Levei um tempo pra entender aquilo. Era outra visão espetacular, que a noite nublada fez ficar ainda mais incrível. Lá por trás das dunas, uma luz muito intensa, amarela e vermelha, oscilante, cortava o escuro e atingia as nuvens, numa área gigantesca. E assim eu fiz registros da Porta do Inferno em conflito com os céus.
Sozinho foi bem difícil acertar ângulo, iso, exposição, foco... O Rustan disse que várias pessoas no próprio país não sabem da existência da cratera e perguntam se não está rolando um incêndio no deserto. Bem, de certa forma...
       Depois disso, fomos dormir. Mas rolou um problema: o Rustan disse que eu e Bolinha não poderíamos dormir juntos. As mulheres deveriam ficar todas juntas de um lado e os homens em outro canto do enorme salão do restaurante. Depois de conversar um pouco, conseguimos dobrar a regra e ficamos juntos meio que atrás de uma mesa. Acho que só deixaram porque somos casados, senão não abririam mão disso. De qualquer forma, isso aumentou o estresse da Bolinha pra dormir. Ela já estava bolada com a quantidade de gente que dormiria ali. Nós quatro, o dono, uns 5 ou 6 funcionários ou parentes e mais outros tantos caminhoneiros que encostaram por lá. No fim, deu tudo certo.
Nossos anfitriões figuraças. Ao fundo, acima, a onipresente foto do presidente. Bolinha disse que morreu de vergonha à noite, pois eu ronquei muito mais que o gordão, que parecia ser o dono.
Nossa "estalagem" pela manhã.
       Na manhã seguinte, partimos de volta pra Ashgabat. O frio de manhã estava pior que o da noite. Ainda tinha umas rebarbas pra ver. Existem mais duas crateras na região, mas são muito menos interessantes. Uma delas tem um pequeno foguinho e lama borbulhante. A outra tem água borbulhante e muita sujeira, que o vento leva pra dentro e ninguém tentou retirar até hoje. Parece que as circunstâncias da criação dessas outras crateras foram parecidas com as da Porta do Inferno. 
Fogo humilde e lama borbulhante. O som é legal.
       Na volta, vimos que demos bastante sorte por não ter nevado em Darvaza. Havia neve no deserto e, quando chegamos à capital, ela estava branquinha.
Frio. Fez muito frio.
       Passamos as últimas horas no Turcomenistão com a sensação de missão cumprida, relaxando e descansando dessa loucura toda. Para quem não tinha esse tipo de experiência, como nós, as situações pelas quais passamos foram diferentes demais. Já tínhamos estado em um deserto, mas num país "normal" e sem qualquer problema com a língua. E aqui tudo foi muito gratificante. Uma amiga me disse outro dia que eu ainda estava no Turcomenistão. Eu discordei, mas, agora que terminei o relato "encomendado", estou me sentindo um pouco estranho. É, talvez ela tivesse razão. Espero que finalmente meu coração esteja livre para retornar de lá.

4 comentários:

  1. Cara, li todas as suas crônicas. Sua experiência deve ter sido maravilhosa, por vezes consegui imaginar algo parecido. Parabéns pela escolha na viagem. Algo realmente único e incrível. Espero um dia ter coragem e a oportunidade de conseguir algo parecido. Abraço!
    Obs: vc é um ótimo cronista.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, o Turcomenistão foi uma ideia maluca que deu certo. E obrigado pelo comentário. Abs.

      Excluir
  2. Sensacional seu relato!!! Tenho muita vontade de conhecer lugares inóspitos e desconhecidos da maioria das pessoas. Ler textos como o seu só faz aumentar ainda mais esse desejo. Obrigado pela leitura.

    ResponderExcluir