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segunda-feira, 30 de março de 2015

Turcomenistão, Parte II: Ashgabat, a capital

       O pensamento maluco de partir pro Turcomenistão começou em meados de 2014, vendo um programa meio besta de TV, chamado "No Perrengue" ("Trabant Trek"). Os caras pegaram três carros velhos de plástico (!), os Trabants, e partiram em uma jornada que atravessaria 18 países, da Alemanha até o Camboja! Pra quem não tem ideia da distância, saca só a loucuraQuando cheguei na sala, uma imagem alucinante estava na TV. Uns caras estavam na beira de um buraco gigante em chamas, que achei ser um vulcão, mas depois fiquei sabendo que era uma cratera de gás queimando. E fiquei sabendo que era no Turcomenistão... Depois
de pesquisar algumas coisas, a ideia de ir pra lá foi até natural pra mim. Muitos que gostam de heavy metal têm alguma fixação por certos cenários: inferno, chamas, essas coisas... Fiquei imaginando o quanto não seria maneiro tirar fotos lá. O que não parecia natural era que a Bolinha também comprasse a ideia. Mas ela se amarrou e me motivou. E passamos meses intermináveis frente à nossa maior ansiedade pré-viagem. As imagens, as condições adversas e o desconhecido eram excitantes e assustadores. Antes de partir pra uma jornada de 23 dias, só pensávamos em sete deles, o Turcomenistão é que tinha que dar certo.
        Não custa falar um pouco sobre o país, que é um dos cinco da chamada Ásia Central, junto com Cazaquistão, Usbequistão, Quirguistão e Tajiquistão. O território é quase todo desértico, sendo 80% coberto pelo deserto de Karakum (Areia Negra). Sua área é um pouco menor do que a Bahia e tem por volta de 5,17 milhões de habitantes (2014), sendo 1,03 milhão na capital, Ashgabat. A população é predominantemente turcomena (muçulmanos, na maioria), mas há minorias significativas, como os russos (ortodoxos, na maioria), com os quais tivemos muito contato na capital. A moeda é o manat e o câmbio é fixo: 1 USD = 3,50 TMT. Eles têm petróleo e são riquíssimos em gás natural, tendo a quarta maior reserva do mundo. O guia confirmou uma "lenda":  muitos deixam os fogões ligados ininterruptamente, já que o gás é grátis para a população, mas os fósforos não. Eletricidade e água também são gratuitos. A gasolina custa 1 manat o litro.
       Os turcomenos foram nômades durante séculos e sofreram com invasões de todo lado, tendo sido constantemente dominados por outros povos. A cidade de Mary é próxima da antiga Merv, que foi, provavelmente, a maior cidade do mundo em algum momento no século XII, por seu importantíssimo papel na Rota da Seda.
       Eles são independentes desde 1991, quando houve o colapso da União Soviética e deixaram de ser uma das repúblicas que a compunham. Só tiveram dois presidentes desde então: Saparmyrat Nyýazow, que governou de 1985 (ainda secretário-geral do Partido Comunista) até sua morte em 2006, e Gurbanguly Berdimuhammedow, que o sucedeu e cujo poder obviamente emana de suas sobrancelhas! Há eleições, mas elas são claramente fraudadas, segundo a imprensa internacional. O Turcomenistão é uma nação neutra, como a Suíça, mas é a única no mundo que detém esse status oficialmente junto à ONU. Isso está na constituição deles e surgiu por conta de possíveis hostilidades por parte dos potencialmente perigosos vizinhos Irã e Afeganistão, segundo um de nossos guias.
Referência à independência no meio do deserto.
O Monumento da Neutralidade (ou "tripé", como eles chamam).
       Voltando às origens da viagem, é realmente necessária muita motivação pra ir ao Turcomenistão. O país é o sétimo menos visitado do mundo, para conseguir o visto é necessário ter uma carta convite de alguém de dentro do país, a representação diplomática mais próxima do Brasil é a embaixada nos EUA, você não pode transitar pelo país (fora da capital) sem a companhia de um guia, a língua é incompreensível e ninguém fala inglês, não há qualquer autonomia na escolha de hotéis para ficar, o país é uma ditadura desde sua independência da URSS (1991), o ditador anterior é o líder mais retardado de que já se teve notícia, a posição geográfica é desanimadora...
O mapa e as fronteiras nada amigáveis ao sul: Irã e o medonho Afeganistão! Repare na grafia do nome do país em português de Portugal. Feião!
       Por falar no tal ditador insano, Nyýazow, ele se autodenominou o "Turkmenbashi", ou "líder dos turcomenos". O povo era obrigado a chamá-lo assim. Ele fechou todas as bibliotecas e hospitais fora da capital. Proibiu balé e mandou o povo roer ossos pra fortalecer os dentes. Escreveu um livro espiritual pra ser a referência religiosa ao lado do Alcorão. Ele trocou os nomes dos meses e dos dias da semana por nomes de seus familiares e outras coisas. Tipo, devia ser algo como: hoje é Primo Maurício-feira, dia 27 de Tia Olga de 2015. Vale a pena pesquisar, é um show de horrores.
       Mas, apesar de tudo isso, eu li muita coisa boa, vi muitos lugares incríveis e imaginei as experiências que poderiam vir. Apostei alto e acertei em cheio! Foi o conjunto de sensações mais incrível que já tivemos em uma viagem. Foram mais de dois meses de negociação e mais de 80 emails trocados com a Mila (da agência) até sair nossa carta convite. Felizmente (isso mesmo), a nossa chegada foi uma MERDA! Sim, ganhamos história pra contar! (Veja aqui o post sobre a chegada.)
       Enfim, vamos finalmente às histórias e nossas impressões! Primeiro de tudo, para nós essa foi uma viagem atípica, no sentido de que eu não pude controlar nosso rumo muito bem. Sempre escolho tudo sozinho, mas dessa vez estávamos nas mãos deles: agência, guias e motoristas. No primeiro dia fizemos um city tour pela capital, Ashgabat. A cidade está no Guiness pelo maior número de construções de mármore branco, um claro resultado da megalomania de seus governantes. É tudo lindo, mas tudo tão lindo, que chega a enjoar... E você vê que não tem ninguém nas ruas pra apreciar aquilo tudo, é uma coisa desproporcional.
Muito mármore, muito ouro, muito chafariz no deserto, muitas estátuas gigantes e nenhuma viva alma... Ok, era domingo. Nos outros dias o movimento aumentou muito.
       Por lá, tudo que é do governo é sagrado, todos os prédios deles parecem palácios. Fomos enxotados de uma calçada para não passar perto demais de algum ministério. Não se pode tirar fotos de nada do governo, desde edificações até pessoas. O guia pedia autorização aos guardas para fotografar certos monumentos. Em alguns deles, as fotos só podiam ser feitas de uma distância absurda. Às 11 da noite todo mundo tem que ir pra casa e fomos expulsos de um British Pub (sim, tem isso lá!): às 22:45 as luzes se acenderam e a música parou.
Cerveja Garagum no British Pub. Surpreendeu positivamente.
       O país é tão fechado que até a internet é controlada pelo governo. Facebook nem pensar! Além de tudo, é relativamente difícil conseguir uma conexão. Partimos para lá no dia 3 de janeiro e só conseguimos acesso no dia 7.
       Apesar de tudo, o povo é muito simpático. Mesmo sem estarem acostumados com estrangeiros, eles tentavam ajudar. Táxi era fácil, QUALQUER carro parava se você fizesse sinal! Um deles começou a teclar loucamente no celular e fazer mil perguntas. Cara estranha, atitude estranha, e quando vi que estava tomando um caminho estranho, achei que ele estava mandando mensagem pra outra pessoa ajudá-lo a me assaltar. Meu medinho aumentou quando ele parou e pegou outra pessoa (estranha :-) no caminho. Aí ele começou a me mostrar o celular, em vez de falar bisonhamente, e entendi. O cara estava usando o google tradutor desesperadamente, de russo pra inglês, porque ficou muito feliz quando descobriu que eu vinha do "Brezilya". E fomos "conversando" por ali. Outro "taxista" estava levando o filho pra escola e me pegou pra fazer uma graninha. Queriam puxar assunto, o de sempre - "football", "beautiful girls" -, mas foi bem difícil.
       A TV deles é muito bizarra. Parece que toda a programação tem apenas três coisas: alguém cantando ou dançando, mulheres tecendo tapetes ou noticiários que mais parecem um diário do Presidente. Chegamos a ver uma espécie de sessão no "congresso", em que o presidente falava sem parar e uma multidão de "deputados" anotava tudo de cabeça baixa, cada um com seu caderninho! Preferimos as TVs russas. Uma delas era "Qual é a música?" e calouros Raul Gil-Style o dia inteiro. Já sabíamos até os nomes dos jurados.
       As meninas, enquanto estão em idade escolar, e isso vai até a faculdade, DEVEM usar longas tranças. As roupas são vestidos longos e coloridos, que elas usam no dia a dia de verdade. Os meninos vão pra escola de terno preto e todos têm uma maleta de velho. Coitados. As mulheres casadas usam um adorno e ficam com o maior cabeção!
Meninas com super tranças!

Mulheres com super cabeças!
       Quando chegamos, ficamos com uma minhoca na cabeça. A cidade estava cheia de árvores de Natal e tinha uns bonecos de um Papai Noel Prateado por todo lado. Mas como, se eles são muçulmanos? Confusão da porra! O guia disse que as árvores eram de ano novo, que o Natal era em 7 de janeiro, mas não era muito importante, e que o rolha-de-poço-prateado não era o Papai Noel. Humpf, é claro que era! Na verdade, os bolcheviques proibiram a celebração do Natal após a Revolução Russa, em 1917, e muitas tradições de Natal, como dar presentes e decorar árvores, viraram tradições de ano novo. Ainda não sei onde entra o Islã nesse balaio de gato... (E acabei de descobrir que a partir de 2101, o Natal passa pra 8 de janeiro, pois a data da festa é baseada no calendário juliano - ainda! - e, portanto, se move a cada "não pulo" do calendário gregoriano. Se você não entendeu, vá estudar calendários!  :-)
       Sobre a língua, meu Deus... Bem, estava mais pra Klingon do que algo humano. Sem ninguém pra entender meu inglês ruim, a solução era apelar pra mímica e rezar. Três exemplos de problemas com a língua:

1) Fomos comprar pipoca. Apontamos e perguntamos quanto era: "manats, quanto?", fazendo números com os dedos e cara de interrogação. E começou: 
       - Torba veya kavanoz tercih? (palavras meramente ilustrativas :-)
       - Manats, quanto? Um, dois, três?
       - Torba veya kavanoz tercih? (um pouco mais alto)
       - Manats, quanto? Um, dois, três?
       - Torba veya kavanoz tercih? (bem mais alto)
       - Manats, quanto? Um, dois, três?
       - TORBA VEYA KAVANOZ TERCIH? (quase berrando!)
       - Porra!
Até que a mulher teve a brilhante ideia de apontar e entendemos: quer no saquinho ou no pote? 

2) Entramos num restaurante, ao lado do Mercado Russo. Vrum! Todo mundo olhando pra gente! O garçom veio sorridente e falou em turcomeno. Fizemos cara de que não íamos entender e ele trouxe um menu. Em turcomeno. "Do you speak english?" Claro que não. Chamou uma mulher. Beleza, alguém que fala inglês. Será que rola uma coisa assim mais ocidental, uma massa? Perguntei se tinha "pasta". A mulher fez cara de nojo, fez cara de não, e não falou inglês. Tentei falar, ela fez cara de nojo de novo, não disse uma palavra em inglês de novo. Desistimos dela. O garçom, mó bonzinho, fez cara de Eureka! Peraí! Foi lá dentro e trouxe outro menu. Pô, por que ele não pensou em trazer o menu em inglês antes??? Ah, tá, porque não era em inglês, era em russo... Bem, pegamos de novo o menu em turcomeno, que pelo menos tem caracteres latinos, e resolvemos olhar com atenção. Incompreensível! Opa, opa! Aqui tá escrito "bishatekhaçhski". Qual é, essa parada só pode significar BISTECA! Vou mandar um bifão nessa porra! Moço, traz dois desses! Bem, o prato era... putz, sei lá... era um macarrão com uns pedaços esquisitos de carne de sabe-se-lá-que-animal em cima, com um primo alienígena de arroz num canto e um ovo frito no topo! Tudo isso arrumado em formato de morro de uns quatro dedos de comida num pratinho de sobremesa! Era bastante comida, por que entulhar tudo num prato tão pequeno? Enfim, dava pra comer e mandei ver. Junto com dois refrigerantes e mais chá pra dois no final (isso era fácil de pedir: çay (tchái)), a conta deu inacreditáveis R$ 11,20.
No Mercado Russo, pude finalmente me vestir a caráter na União Soviética! Maneiro, mas quero saber QUANDO vou usar esse chapéu de novo...
3) Em outro dia, eu estava no banho e, putz, não tinha toalha. Bolinha foi lá na recepção e fez as mímicas de "tomando banho" e "secando com toalha". Não dá pra não entender, a não ser que eles tomem banho, sei lá, dançando e rodando. Não entenderam. Juntou gente, mais gente, trouxeram coisas. Um sabonete. Um shampoo. Uma esponja gigante. E, porra!, um pedaço enorme de pão!!! Caraca, pão? 
       - Não, não precisa, obrigada! 
       - Пожалуйста, оставайтесь с ним! (Por favor, fique com ele!)
E toma de empurrar o pão.
       - Это любезно! Xахаха! (É uma cortesia! Hahaha!   :-)
E aí rolou um novo problema: qual é a etiqueta muçulmana (ou ortodoxa, vai saber) para o momento da percepção de um pão doado? Tem que comer na hora? Tem que agradecer abraçando a pessoa? Pode encostar nas pessoas? Tem que enfiar o pão debaixo do sovaco? Por via das dúvidas, ela juntou as mãos, botou na frente do nariz, baixou a cabeça (tá no Japão???) e comeu um naco do pão, fazendo cara de "que delícia!". Enfim, um cara teve que ir ao quarto pra entender que queríamos só uma toalha. E ficamos com o pão fresquinho.

       Deixamos de visitar alguns lugares como museus, mercados e parques que nos foram recomendados. Infelizmente, não tínhamos tempo e viajamos pra lá por outros motivos. Em suma, a capital é uma cidade boa pra fazer base e até interessante de se conhecer.
       Seguem algumas fotos de Ashgabat e imediações.
Mesquita de Kipchak vista do alto da Fortaleza de Nissa (patrimônio da Unesco).


Mesquita de Kipchak à esquerda e Mausoléu de Nyýazow à direita. A mesquita é linda demais por dentro, ganha de qualquer uma que visitamos na Turquia. Obviamente, não é permitido fotografar.  :-(
Atrás dessas montanhas fica o Irã. Lá eu entendi a expressão "montanha russa". Eles simplesmente não se importam em desviar a estrada por conta de depressões. É uma reta e pronto. Quando perguntei ao guia, ele me disse que lá eles chamam de "american mountain".  :-)
Uma das inúmeras estátuas do Nyýazow. Em várias ele usava uma capa! Uma delas tinha uma base que rodava de forma a manter a estátua sempre de frente para o sol. O novo presidente tirou esse dispositivo.

Neve no deserto: pra gente, foi bastante surreal.
        Nos dois próximos posts estarão as partes mais esperadas da viagem por nós: nossa primeira jornada pelo deserto de Karakum, rumo ao Cânion de Yangykala, e a sensacional ida à Porta do Inferno.
       Até mais!

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